"De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha
de ser honesto".

(Rui Barbosa)


sábado, 5 de novembro de 2011

Um bem querer pra 200 anos

Naquelas brenhas do sul do Pará, numa nesga de terra entre o Araguaia e o Tocantins, onde, no dizer dos mais antigos, o vento fazia a curva, moravam João Dioclécio e a mulher Fátima. Numa terra de poucas convenções, João conhecera a moça quando esta tinha pouco mais de 13 anos e poucos meses depois a levara para morar com ele. Apesar de viverem felizes, já entrara na casa dos seis anos e nada de filhos. No interior diziam que ela tinha o útero seco, mas isso nunca foi impedimento para a felicidade dos dois. Era como se eles se bastassem.

Naqueles tempos ainda não havia a sanha desvairada pela terra, que faria sangrar as décadas seguintes e enterraria o sonho de muita gente, num cenário de ódio, sofrimento e sangue. Pras bandas do Araguaia todo mundo tinha seu palmo de terra, nem muito, nem pouco, mas na medida certa para o cultivo da mandioca, do arroz, do feijão de corda e nos meses certos, a colheita da castanha era a garantia de algum dinheiro no bolso.

Dentro do ambiente dos mutirões, do forró pé de serra no final de semana o casal João Dioclécio e Fátima era o exemplo acabado de algo que dera certo, feito a tampa e a panela. Ele, um caboclo forte, bronzeado do sol do roçado, bom de serviço e falante. Com Dioclécio não havia tempo ruim. Era como dizia o próprio, “perco um amigo, mas não perco a anedota”. Na ponta do eito, o que se ouvia era a risada generosa do caboclo, fazendo piada de tudo e de todos. Já a morena Fátima, que todos respeitosamente chamavam de D. Fátima, apesar dos seus 19 anos era a meiguice em pessoa. Pronta a ajudar, era a primeira a chegar no barracão nos dias de farinhada. Com um sorriso discreto nos lábios, ela varava a noite na lida, fazendo a farinha de tapioca, preparando a massa para o beiju da madrugada e quando precisava, ainda arranjava tempo para paparicar o bebê de alguma amiga.

A respeito do casal contava-se muitas histórias, todas na surdina, até porque Dioclécio mostrava-se um sujeito da hora, que não gostava de mandar recado. Sua missa costumava ser de corpo presente. Dizia-se à boca pequena que o homem era um furacão de alcova e se a Fátima não tinha filhos a culpa não era dele, já que se fazia presente todas as noite e às vezes, no decorrer do dia. Se era verdade, ninguém poderia afirmar, mas era evidente a adoração da morena por Dioclécio.

No auge da sua altivez, com 30 anos incompletos, um ramo de cipó jitirana no seu caminho. De repente a montanha de músculos veio abaixo e aquele maldito dia ficou gravado na vida de cada vivente daquela região. Com o crânio partido, resultado daquele tropeção idiota, que acabou atirando o caboclo de encontro a um tronco de amarelão, João foi encontrado quando o sol se fazia meio-dia.

A redondeza conta que Fátima envelheceu 20 anos em cinco. Recusou-se a deixar a casa, não quis mais saber de festa, se isolou do mundo e nunca mais procurou outro homem. Ficou conhecida como a louca do Araguaia, cuja demência a fazia perambular pelos locais que antes eram frequentados por ela e Dioclécio. Aos 50, com cara de 70 até hoje ela é vista em peregrinação ao túmulo do marido, três vezes por semana. Um bem querer pra 200 anos.


(Artigo publicado no jornal HOJE - Coluna do Marcel)

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